Continuando a série sobre a maneira rasteira como o tema defesa é tratado no Brasil, a réplica do blogueiro pode ser achada aqui.
Parece que além de despertar os piores instintos, despertei também o vasto conhecimento do blogueiro sobre o tema, inclusive com algumas novidades sobre caças que, confesso, desconhecia. Vamos por partes.
Ele primeiro começa contradizendo sua própria informação de que os eua não transferem tecnologia. Agora eles transferem, mas em casos especiais. Diz o blogueiro:
Bem, se eu mesmo disse que partes do Gripen são fabricados sob licença norte-americana, é claro que os EUA transferem realmente alguma tecnologia.
O sujeito imagina rebater meus argumentos dando exemplos de países que têm licenças para fabricar alguns aviões norte-americanos, tais como a Coréia do Sul, Japão, Israel e Turquia. Nem é preciso dizer que tais países estão vinculados a tratados com os EUA, sendo que a Turquia é membro da OTAN, Coréia do Sul e Japão tem tratados de defesa mútua com os EUA e Israel, ora, Israel.
Logo, a questão é essa: para o Brasil ter acesso real à tecnologia norte-americana, precisa ter um tipo de relação especial com os EUA que o país não deseja. É claro que se pode questionar se essa postura é razoável ou não, mas é bom entender que ela não é uma invenção do governo Lula, é uma postura do Estado brasileiro relativamente antiga. Prova-o aliás o fato de que foi o próprio governo Fernando Henrique Cardoso o responsável por jogar um balde de água fria na proposta da ALCA e fortalecer o Mercosul.
Observem, os EUA transferem >>>alguma<<< Tecnologia. Sendo que existem projetos INTEIROS que contaram com contribuições pesadíssimas dos EUA. O F-16 gerou simplesmente o Lavi israelense, o F-2 japonês e o T-50 da Coréia do Sul. Isso pra não entrarmos aqui em suites ECM, radares, mísseis, e outras coisas mais que contam com tecnologia dos EUA.
Não caro blogueiro, você não se expressou mal. Sua afirmação de que os EUA não transferem tecnologia é falsa.
Agora o fillet mignon da resposta, a parte em que ele fala que para ter acesso a tecnologia americana é preciso ter algum tipo de relação com os EUA. A barriga doeu de tanto rir.
Pra ter acesso a tecnologia chinesa tem que estar alinhado politicamente com aquele país. Pra ter tecnologia russa também, sendo que este país cometia a pachorra de desenvolver uma versão downgraded de TODO o seu equipamento militar para então exportar. E a França, essa alma caridosa, o que é preciso fazer pra ter acesso a tecnologia francesa?
Pra ter acesso a tecnologia francesa nas diversas áreas de cooperação o Brasil está pagando 32 bilhões de reais, o suficiente pra montar uma marinha novinha em folha se fosse comprar em estaleiros estrangeiros ou então desenvolver dois projetos de caça como o Rafale . Se 32 bilhões de reais em compras a valores questionáveis não são uma compra de uma relação especial eu não saberia dizer o que é.
A “relação especial” com a França merece um parentese. De maneira a manter-se independente no desenvolvimento de armas e ter menos interesses geopolíticos em jogo, a França sempre foi menos restritiva quanto a quem vender armamento de ponta devido a necessidade de financiar sua industria militar, visto a economia francesa não ter nem o tamanho da economia dos EUA e nem podia manter-se em estado de guerra como a economia soviética. Por isso é mais fácil negociar certas vendas com a França. E por isso também a França ser conhecida nos meios militares como a prostituta do mundo.
Achar que os EUA são uma casa de caridade que agiriam em detrimento dos seus interesses é no mínimo ingenuidade em excesso. Não existem santos nesse jogo.
Ele ainda demonstra vasto conhecimento do funcionamento da industria militar mencionando o Arms Export Control Act, ilustrando os seguintes pontos:
“(b) Conduct of program
In carrying out the program established under subsection (a) of this section, the President shall ensure that the program—
(1) provides for the end-use verification of defense articles and defense services that incorporate sensitive technology, defense articles and defense services that are particularly vulnerable to diversion or other misuse, or defense articles or defense services whose diversion or other misuse could have significant consequences; and
(2) prevents the diversion (through reverse engineering or other means) of technology incorporated in defense articles.” [grifos meus]
Como se fosse possível pra um governo estrangeiro fiscalizar engenharia reversa da operação de uma força aérea. O que esses controles impedem é você pegar um F-16 e montar sob licença ou lançar um G-17 e vender no mercado internacional concorrendo com o caça americano. De resto é conversa pra boi dormir e fazer a venda passar no congresso americano.
Existiam dispositivos parecidos no Acordo de Alcantara proposto pelos EUA, isto é, clausulas inócuas que tornariam o acordo politicamente digerível dentro do congresso americano mas que não tinham implicação prática nenhuma. Isso será assunto de outro post.
Continuando as pérolas
Aviões com duas turbinas são aviões de superioridade aérea: voam mais alto, mais rápido, e atacam de mais longe. Seu objetivo é ou destruir uma força de ataque inimiga que se aproxime ou destruir instalações de defesa do inimigo (radares), tornando sua capacidade antiaérea inoperante.
Essa foi a primeira novidade. Nosso especialista em defesa demonstra seu conhecimento de causa mencionando que caças monoreatores são mais lentos que caças bireatores. O poderoso F-22 com 70.000 libras de empuxo tem quase a mesma velocidade máxima de um F-16 que possui metade deste empuxo. Como isso é possível? Simplesmente o limite de velocidade dos caças atuais está ligado a limitações estruturais da célula e da turbina do que potência propriamente dita.
Acima de mach 2 a temperatura sobe exponencialmente na célula a níveis críticos. Perto de Mach 3 você precisa de titânio em uma série de partes da aeronave de maneira a garantir a integridade estrutural. Acima disso é assunto para os simuladores de vôo e a nova geração de aeronaves scramjet que está em desenvolvimento.
Mas vamos analisar alguns projetos de caças monoreatores: Mirage III, Mig-21, Mig-23 Viggen e outros monoreatores são aviões de superioridade aérea.
A industria francesa possui ainda o Mirage F-1 e o Mirage 2000, este ultimo otimizado exatamente pra altas altitudes e longo alcance.
Exatamente o tipo de missão que nosso especialista julga ser tarefas de caças bireatores.
O segundo motor num caça aumenta custos, aumenta peso aumenta a complexidade e diminui a disponibilidade. Por que um projetista em sã consciência enfiaria um segundo motor num caça então? A resposta é pra melhorar a relação peso/potência do caça.
Todo caça é uma solução de compromisso. Levar uma carga bélica a uma distância X, num envelope de vôo Y dentro de de Z dimensões de projeto. Se você precisa de melhor manobrabilidade ou maior carga bélica você deve precisar de mais empuxo. Se você precisa de mais alcance você vai precisar de um caça maior para suportar mais combustível, e pra não sacrificar manobrabilidade ou carga bélica você adota o segundo motor, que vai gerar mais peso… é esse puxa-encolhe que é o projeto de um caça.
O que acontecia nos anos 50? A única certeza era que a era dos turbo-hélices era passado pra caças militares, e havia necessidade de longo alcance e velocidade. Devido a baixa potência dos motores, aparecem então projetos como o B-52, com 8 turbinas. Apenas a título de comparação, as 8 turbinas TF-33 dos B-52 geram 136.000 libras de empuxo pra levantar o bombardeiro. Uma única turbina GE90 dos boeing 777 gera 115.000 libras.
O que acontecia nos anos 60? Caso você precisasse de um caça mais pesado você tinha que contar com a turbina J-79, que possuía míseras 11000 libras de empuxo seco e 17000 libras de empuxo com afterburner, isto é, literalmente jogando querosene na saída da turbina.
Nos anos 70? Você já poderia usar a F-100 da Pratt & Whitney, que possuía perto de 17000 libras de empuxo seco e 23000 libras em afterburner. Esta é a turbina do F-15. Guardem este detalhe.
Nos anos 80? 18000 de empuxo seco e 29000 libras de empuxo com afterburner. O F-16 dos anos 80 já possuía relação peso/potência superior ao F-4 dos anos 60.
Nos anos 90 aparece a F-119, a turbina do F-22, 25000 libras de empuxo seco e 37000 de empuxo com afterburner.
Agora nos ultimos desenvolvimentos temos a F-135, que garante indecentes 43000 libras de empuxo com afterburner. Ou seja, uma única F-135 vai garantir o que duas turbinas F-100 geravam pro F-15A quando da sua entrada em serviço. Essa mesma turbina garante sozinha quase o empuxo total que as duas anêmicas M88-2 do Rafale garantem.
Ou seja, com 43000 libras de empuxo disponíveis hoje e relações peso/potência superiores a 1:1, não dá pra ficar falando em duas turbinas como pré-requisito para um caça pesado.
Quebrada a barreira da potência e com a confiabilidade das turbinas aumentando, a segunda turbina como salvaguarda deixa de fazer sentido pra maioria dos cenários. Principalmente porque perder uma turbina em combate e ter outra não é garantia de retornar para a base. Vão haver casos em que a segunda turbina vai salvar o dia? Sim, mas o calculo que se faz hoje pela USAF e pela USN é que essa segurança adicional não compensam os trade offs atrelados a ela.
Ainda continua:
O exemplo do F-16 na aviação israelense é muito mal colocado, porque o F-16 é um avião de ataque ao solo _ a superioridade aérea israelense está assegurada pela existência dos F-15. A Operação Opera, por exemplo (a destruição do reator nuclear iraquiano de Osirak, em 1981), foi conduzida por 8 F-16 que atacaram o reator, mais 6 F-15 para dar suporte aos F-16.
F-16 aeronave de ataque ao solo? Israel voando exclusivamente F-15 para superioridade aérea?
*Falta de ar de tanto rir*
O F-16 desde o início de sua existência foi pensado como um caça de superioridade aérea e com capacidade de ataque terrestre limitada. Ele deveria ser uma solução mais barata para complementar o caríssimo F-15.
Israel, Egito, Holanda, Bélgica e outros early adopters do F-16 o utilizavam como caça, e não como uma plataforma de ataque.
Nos anos 80 com a miniaturização de diversos sistemas o caça ganhou capacidade de ataque e melhoras em suas capacidades ar-ar.
E nos anos 90 as melhoras nos sensores e outros upgrades melhoraram ainda mais o caça, tanto na arena ar-terra quanto na arena ar-ar. O F-16 de fato tem um envelope de vôo mais restrito que o F-15, mas possui sistemas parecidos, utiliza o mesmo armamento e custa mais barato comprar e operar o F-16.
No início desta década Israel fez uma concorrência sobre seu futuro caça entre o F-16I e o F-15I. O F-15I é uma versão do venerável caça americano que utiliza aviônica israelense, foram comprados numa concorrência anterior 25 desses caças. O F-16I é uma versão do F-16 com aviônica israelense e tanques conformais de combustível de forma a extender o raio de ação do caça. Adivinhem o que aconteceu? O F-16I bateu o F-15 na concorrência pelo futuro caça israelense.
Por quê isso? Com os tanques conformais e sistemas melhorados a vantagem oferecida pelo F-15 simplesmente não compensavam seus custos de operação. Em alguns cenários a vantagem de raio de combate do F-15 comparada ao F-16 não é tão significativa. E com o combate aéreo saindo da esfera das piruetas e partindo pra um duelo de sistemas, o F-16I para a IAF demonstrou ser uma alternativa de melhor custo vs benefício em comparação com o F-15I para realizar tanto missões de ataque quanto missões de superioridade aérea .
Existem apenas 52 F-15 nas versões C, D e I, e mais de 200 F-16 ativos em Israel. Enquanto que em 2020 não mais do que 20 F-15 estarão ativos em Israel, pelo menos metade dos F-16 ainda estará em atividade. E eu duvido que Israel pense em garantir superioridade aérea com somente 20 caças.
Conforme fica claro, nosso especialista conhece a fundo o F-16 também o papel deste caça na força aérea israelense.
Continuando:
Ao que eu saiba ainda não se sabe bem qual será o Rafale vendido ao Brasil. Fala-se em 36 com opção para mais 84, incluindo talvez uma versão naval (coisa que não existe no Gripen). De qualquer maneira, o parágrafo acima “esquece” todo o resto da discussão, que envolve a transferência de tecnologia, a compra de aeronaves da Embraer pela França, e outras parcerias comerciais que vêm no “pacote completo” (inclusive na questão dos submarinos).
A “estratégia” é agora trazer o pacote de submarinos e helicopteros pra cá. Sendo que excluído o Rafale ainda estariamos falando de cifras pelo menos 9 bilhões de euros e não houve imposição nenhuma da França de só vender o pacote ou não vender nada.
Enrolou, enrolou, pra dizer que ou vem pra cá um caça defasado ou então um caça cujos sistemas ainda não estão desenvolvidos. Ou seja, com riscos e custos de projetos atrelados a ele, de maneira semelhante ao Gripen.
Quanto ao batismo de fogo no Afeganistão, mandar meia duzia de caças soltar meia duzia de bombas no meio do nada está muito distante de operações sustentadas que F-16, Mirage 2000, F-15, F-4, F-18 e outros enfrentaram.
Continuando:
Aqui o moço tem discurso de armeiro, mas deixa que as árvores ocultem a vista da floresta. A graça, justamente, de se ter completa transferência de tecnologia é que você se torna capaz de fabricar seus próprios armamentos, ficando livre de problemas como o citado _ que aliás são comuns a todos os três aviões.
Me parece que o rapaz é um aficcionado em armas. Este perfil se encontra muito em discussões de defesa, mas em geral é gente incapaz de entender as consequências estratégicas deste tipo de decisão.
O blogueiro para então fugir da lambança que fez tentando defender a escolha do caça pelo governo agora apela para “questão estratégica” da “transferência de tecnologia”.
Ele deve ser funcionário público. Toda vez que um funcionário público usa a palavrinha “estratégica” e fala “transferência de tecnologia”, pode ficar certo que isso é justificativa para preços mais altos em licitações e que invariavelmente não geram nenhum resultado adicional além do produto comprado. Só espero que ele não seja político.
Existem maneiras diferentes de se livrar de dependência tecnológica que passem por não comprar pacotes como esse oferecido pela França. A mais óbvia seria manter duas linhas de fornecedores politicamente distantes, como fazem Taiwan e Grécia.
A segunda seria fomentar uma produção local de um sistema, mas o Brasil tem se mostrado bastante incompetente nessa área. O ponto é que transferência de tecnologia na escala desejada pelo Brasil é algo bastante difícil de se colocar num contrato com as devidas salvaguardas e cujos resultados são bastante complicados se mensurar.
E quando se fala em transferência de tecnologia pro Brasil, falta um elemento da cadeia extremamente importante:
– Base científica e industrial.
Quem assimila a tecnologia é a base científica, mas é a base industrial que matura os processos e transforma o conhecimento em armamento. O Brasil não tem nenhum dos dois na escala desejada pelo governo, ponto. E não dá pra simplesmente injetar tecnologia e achar que os problemas estarão resolvidos.
Transferência de tecnologia é algo que deve ser feito com bastante cuidado, com escopos bastante claros e limitados e de preferência num projeto empregando a tecnologia em questão e com preços e prazos bem definidos. É assim que se trabalha no mundo inteiro.]
O governo Lula inventou e nosso especialista endossa um novo modelo de transferência de tecnologia: Pagam mais caro pelo produto, assinam um convênio e esperam que a tecnologia brote do nada.
O dinheiro da “transferência de tecnologia” seria muito mais bem empregado no fomento a projetos locais. Mas fiquem certos que investir em projetos locais não geram lobbies elegantes e saudáveis e outros agregados mais difíceis de esconder em transações internacionais.
Eu fico sem saber se uma análise tão ruim por parte do blogueiro deve-se exclusivamente ao baixo nível das fontes primárias no Brasil ou se a cultura de Fla Flu que impede qualquer análise menos primária e mais objetiva sobre o tema.
Escreverei sobre transferência de tecnologia em breve.